Uma família feliz, José Eduardo Belmonte, 2024

Do retrato irônico da família superficialmente perfeita, o diretor Eduardo Belmonte busca na estranheza e na solidão da vida de uma mãe solitária os elementos de suspense que sustentam essa trama. Por cima parece, aliás, um filme só disso. Do desenrolar desse enredo. De tentar descobrir o que acontece, como acontece. Quem foi. Como foi. Fantasmas metafóricos e talvez reais que pairam sobre a vidinha suburbana de classe média das personagens. 

Mas por baixo ele parece querer mais. No subtexto ou nas entrelinhas. Com o que tem de mais curioso vindo dessa rotina que se alterna entre a labuta da mãe e o hobby esquisito. O ateliê dos bebês reborn. As bonecas hiper-realistas que copiam bebês reais e vêm muitas vezes substituir o luto sobre crianças que morreram. É só um detalhe mas um detalhe que dá alguma cor. E que se torna para o diretor fruto de imagens que preenchem esse mistério. 

Então as coisas acontecem sem a gente ver, mas enquanto isso pedacinhos de bracinhos, torsos, mãos e pés falsos se espalham pela casa. Em um momento. Uma cabeça realista de um bebê gira no micro-ondas (para secar a tinta) enquanto o som denuncia algo ao redor. 

De quebra. Existe como um fundamento por onde tudo isso se estende uma criação de mundo que vai servir de algum jeito a algo que é parte do tema aqui. A questão das aparências. A família perfeita onde a mãe vive desse hobby muito feminino das bonecas e onde o pai, advogado que cresce na carreira sai para trabalhar e sustentar a todos. As meninas gêmeas fazem aniversário. Uma delas ganha o iPhone de última geração. A casa é no condomínio caro de Curitiba. O carro é confortável.

Mas nos detalhes, se vê algo a mais. O giro no próprio eixo da carreira de um. A pressão na outra pra vender uma casa e levantar algum dinheiro. Porque não sobra. Para a hipoteca, para o parcelamento do telefone, para o tratamento de uma doença. Chama atenção por si essa construção visual desse mundinho. Os móveis de mdf planejado todos beges e a decoração horrorosa de casa comprada na planta. Muito gesso. Muita luz branca. Muito piso de porcelanato espelhado. Em oposição a uma casa moribunda mas mais real. A do passado, assombrada pelas bonecas de porcelana. 

Onde tudo parece cercado da natureza tentando entrar. O taco solto no piso. Os móveis atulhados de madeira de lei. As réstias de luz por entre a escuridão de um lugar abandonado. De um passado abandonado. Lugares que parecem ter muito a dizer. Isso em um filme sobre um mistério perdido no passado e um mistério que assombra o presente. 

Uma mulher que morreu há um tempo. Crianças que começam a ser machucadas agora. 

A história, que vem de um livro do badalado Raphael Montes, autor de um punhado de livros e contos já adaptados para TV e cinema – do tríptico de filmes sobre Suzane von Richthofen até o hit da Netflix: Bom dia, Verônica. E aqui não só ele fornece a premissa como assina o roteiro também. Roteiro esse que funciona bem. Apesar dos ruídos. De cenas que parecem querer refletir algo sobre perseguição social mas que nunca vão longe de verdade.

No meio, tudo é movido por essa chave de ser uma história sobre essa vida artificial da classe média contemporânea enquanto é também sobre as dores da maternidade. Com todas as metáforas e simbolismos mais evidentes que se tem direito. E todos os diálogos mais rudimentares também. 

(tipo em um momento em que numa briga sobre dinheiro, o pai, Vicente, fala com a filha dando uma indireta pra mãe “alguém precisa trabalhar enquanto sua mãe fica aqui brincando de boneca”)

Não é nada sutil. E nem era pra ser. Mas o elo fraco aqui talvez seja a forma como Belmonte nunca percebe isso e nunca abraça mesmo essa loucura. E como ele tem que lidar, nessa dramaturgia mais seca e mais séria. Com atores que nem sempre vão dar conta de um filme tão pretensamente naturalista nessa lida com um material mais chulo. Nessas, Grazi segura bem a sua Eva quando precisa caminhar entre a depressão mais mínima e o seu lado mais dissimulado. 

Mas não dá pra dizer o mesmo de Gianecchini. Não que careça de talento ou capacidade. Mas que tenta dar um peso mais sombrio e intenso ao seu Vicente. O que nunca funciona de verdade. 

No que os dois funcionam: a imagem do casal realmente perfeito, padrão. Dessa família plasticamente perfeita. Como se eles próprios fossem esses bonecos do ideal. Pra não dizer gostosos. 

(Aliás, o filme ensaia muitas vezes uma exploração de sexo que podia ir mais longe. Mas divago.)

Nesse embate entre a história pueril e a construção dramática e social mais densa. Entre o suspense barato e o retrato do Brasil contemporâneo, encontra-se algum equilíbrio. Mesmo que o filme nunca defenda de verdade seus lados mais estapafúrdios, os elementos por si funcionam.  Como a atuação da menina em um momento chave do terceiro ato. Onde a frieza de uma fala funciona perfeitamente. 

E embora dê pra entender se Uma família feliz for rejeitado por qualquer lado que for – seja porque o lado caricato soa ridículo em um filme realista ou porque o lado realista soa muito denso em uma história esdrúxula assim – no fim funciona porque o diretor é hábil em trazer esse nivelamento pela imagem também fria. 

Deixando claro aqui o aspecto de produção até pequena e independente mesmo com as estrelas à frente do elenco. Dando uma textura ao visual em uma construção que intercala alguns extremos das capturas digitais. Tanto na decupagem mais padrão quanto na inserção do vídeo da babá eletrônica ou das câmeras. Coisa que parece também, em mais uma camada, querer dizer algo talvez sobre o monitoramento e auto monitoramento eterno contemporâneo. Mas que na prática também acaba sobrando. 

uma família feliz, 2023
direção: josé eduardo belmonte
roteiro: raphael montes
fotografia: leslie montero
montagem: jota santos
elenco: grazi massafera reynaldo gianecchini luiza antunes juliana bim 

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