Curioso como o que mais marca o filme de Sarah Polley – um dos muitos a se apoiar diretamente ou não sobre o que fazer com homens que cometem crimes contra mulheres em um mundo pós Me Too – é uma lógica de se distanciar. Ou de criar um ambiente de distanciamento dos crimes para pensar numa saída possível de um problema que tem como origem a própria forma como a sociedade se organiza. Sacrificando algumas possibilidades dramáticas no caminho mas tudo em prol dessa disciplina de construir a obra dentro de um espaço e de uma ideia bem delimitada. 

Mulheres falando é o título original. É também o que praticamente descreve um filme que se move pelos diálogos e pela discussão central, textualmente, sobre o que fazer com os abusadores daquela sociedade (e com os abusadores da nossa, subtextualmente).

Para tanto, Polley faz maravilhas na mise-en-scène com essa premissa quase teatral mas nunca relegada a coisa do teatro filmado por causa de uma eterna procura dessa câmera pelo que existe entre o que elas falam. Também usa e abusa de uma janela ampla e que captura ao mesmo tempo a fala e quem ouve.

Entre mulheres é, então, sobre os monólogos e os bate bocas e as digressões que saem das suas bocas mas também é sobre as relações que se sobressaem quando não tem ninguém falando ou quando algumas delas não prestam atenção no tema do momento ou quando os sentimentos de trauma ou de sororidade são mais eloquentes que o que é dito.

A história é escabrosa. Inspirada na realidade (em um caso revelado em 2011, na Bolívia) mas materializada aqui sem pretensões de retratar algo específico, a ambientação é em “algum lugar” em “alguma comunidade cristã”. Mulheres sistematicamente dopadas com tranquilizante animal e estupradas por seus vizinhos, irmãos, familiares, homens de confiança.

Não retratar a violência em si é o mínimo. Mas a diretora vai mais longe ao nos tirar até mesmo as reações mais imediatas das vítimas. Deixando no filme as sequelas. As aceitas e transfiguradas em algo positivo (para a personagem) como a gravidez da personagem de Rooney Mara. As que se tornaram inconveniências como a dentadura grande demais da personagem de Sheila McCarthy, que perdeu os dentes quando violentada. As que viraram ódio puro, ataques de pânico, mudez. 

Coisa que ecoa uma ideia central de distância. Que se concretiza em August, o único homem (cis) do filme interpretado por Ben Whishaw, personagem que sempre se prostra a partir de seu papel inestimável de registro. De garantidor de marcar a existência delas e da violência que elas sofreram.

Nesse caso, mesmo o carro do censo de 2010 que aparece fazendo barulho em algum momento e pode parecer aleatório, comenta a importância primordial de que antes de tudo, o que uma sociedade precisa é garantir algum atestado de sua presença. A cineasta garante que nós sejamos August, de algum jeito. Com nossas opiniões e nossas preferências. Nossos pensamentos do que deve ser feito dos criminosos. Tudo deixado de lado porque nosso papel principal é o de presenciar.

Nessa toada, o filme sempre beira uma linha tênue de nos aproximar de cada uma delas a ponto de nos permitir alteridade e empatia com suas histórias mas nunca a ponto de nos colocar na sua pele. Tendo como ferramental formal mais chamativo aqui os planos vistos de cima (plongée), e uma montagem que sempre potencializa a decupagem das discussões buscando inserir do jeito mais preciso flashbacks que vão ilustrar o que é dito, nos inteirar de detalhes não falados ou potencializar certos sentimentos que acabam escapando. Os dentes quebrados na palma da mão. O lençol ensanguentado. A ternura para com os meninos jovens antes que eles se tornem o pior.

Além claro, da penumbra de pós produção na fotografia que suga o filme de suas cores e de sua luz. Muitas vezes a níveis que até podem causar um distanciamento indesejado. Incômodo. Não deliberadamente. (a narração em off também sobra, quase enfraquecendo a lógica de nos manter afastados ao priorizar uma ideia de história contada)

No todo, é como se sempre fôssemos lembrados de que nunca vamos saber como é estar na pele delas. De que o crime já passou. E de que o debate ali busca uma solução muito mais ampla que a experiência particular de qualquer uma. Repensando as próprias estruturas sociais que permitiram que aquilo aconteça. Escolha que ainda que prive o filme de uma ligação dramática mais poderosa com qualquer uma delas individualmente, só faz fortalecer a discussão central.

Nesse processo, a obra nos rouba de uma catarse fácil. Tira pouco a pouco a sede de sangue que no começo pode fazer com que o espectador queira a morte ou a punição física e dolorosa daqueles homens. Não para nos fazer defender sua impunidade mas para nos lembrar de que essa violência não surge de um vácuo e para reafirmar o protagonismo daquelas mulheres no que mantém aquela comunidade viva. 

Ratificando que a maior punição possível para os monstros surgidos dali é perdê-las.

women talking, eua, 2023
direção: sarah polley
roteiro: sarah polley
fotografia: luc montpellier
montagem: christopher donaldson roslyn kalloo
elenco: rooney mara claire foy jessie buckley judith ivey sheila mccarthy michelle mcleod kate hallett liv mcneil august winter ben whishaw frances mcdormand kira guloien shayla brown emily mitchell eli ham lochlan ray miller vivien endicott douglas nathaniel mcparland marcus craig will bowes emily drake caroline gillis shannon widdis

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s