Meio que desde sempre Larraín foi um cineasta que gosta de filmes visualmente “marcantes” pra usar um eufemismo. Como se ele tentasse traduzir seus temas ou suas ambientações em algo exagerado o suficiente para criar no seu cinema uma impressão  clara de que “existe um diretor ali”. 

Tendo visto Jackie e não tendo visto Ema, filmes que vieram anteriormente a Spencer, é perceptível um certo declínio nesses impulsos. Não por uma recusa ou uma renúncia completa mas por finalmente um encaixe melhor e mais orgânico no “conteúdo” em questão. Jackie é algo que parece ter ido longe demais, na memória. Como se ele suprimisse esses instintos a ponto de tornar o filme uma versão muito desidratada da manifestação visual do luto da personagem. 

Tanto que cinco anos depois, é difícil lembrar de coisas específicas da obra que não sejam a interpretação esforçada de Portman tentando acertar o sotaque da primeira dama ou a trilha sonora marcante de Mica Levi.

Em Spencer, entretanto, Larraín encontra o que seria o equilíbrio perfeito para suas presunções cinematográficas de trazer alguma cor e alguma estética mais formal a histórias que se apeguem à realidade. Fazendo isso ao despir qualquer detalhe sórdido ou qualquer tom oficial ou respeitoso ou reverente dessa história e tornar Lady Di uma personagem atormentada pelo horror de estar eternamente ligada a uma família que se agarra há séculos a uma nação como se fosse um parasita. 

O filme não tem uma data exata, não tem acontecimentos oficiais muito presentes, não busca uma reconstituição visual perfeita como a da série The Crown e muito menos uma reconstrução fidedigna da aparência de ninguém. É uma obra que logo nos primeiros instantes, num letreiro na tela, já se apresenta como ela será: “uma fábula inspirada numa tragédia real”.

No meio disso, uma mulher profundamente triste. Julgada, medida, pesada (literalmente), pelo que veste, pelo que faz, pelo que não faz, pelo que aparenta. Um objeto incômodo para aquela família. Circulando, num fim de semana de Natal, por uma casa que existe à sombra de outra, a de um mundo livre e inalcançável e arruinado. Cercado por arame farpado. Como uma representação concreta da dor que a separa da possibilidade de uma vida normal. 

A melhor escolha estética do diretor vem da integração de elementos de horror clássicos e também psicológicos nessa passagem de tempo. Como se fosse uma protagonista de um filme de casa mal assombrada dos anos 30 ou 40, Diana aqui circula pelos corredores opulentos e vazios sempre sob a ameaça de que alguém a está seguindo, alguém a está vendo, alguém a está ouvindo.

Buscando aliados nos serviçais, nos cozinheiros, nas camareiras. Como se quisesse alguma força aliada para contrapor os exércitos da rainha. 

Na primeira cena, aliás, o paralelo é claro entre o exército de cozinheiros e o grupo de soldados passando uns pelos outros juntos, em formação, submissos a uma rígida hierarquia. Como se fossem duas forças opostas representantes de facções naquela arena. 

Diana é puxada por estes dois lados. Quase a ponto de se romper. Como se buscasse estar nos dois lugares ao mesmo tempo. Nessa existência, o colar de pérolas se torna um grilhão que pesa sobre o colo; os vestidos peças que parecem não fechar sobre seu corpo mesmo que sejam feitos sob medida; a rigidez da agenda a qual ela é submetida nunca parece lhe deixar tempo para uma vida própria. 

A trilha de Jonny Greenwood, uma das suas grandes peças do ano para o cinema (junto com a do Ataque dos Cães), se faz de um conflito montado a partir de violinos, cravos e instrumentos clássicos rompidos pela instrumentação de uma percussão de jazz. 

É um filme que retoma a estética berrante do diretor. Se jogando, além de todos os elementos citados, numa decupagem e numa fotografia que sempre mostra a personagem isolada em planos sem profundidade de campo. Encaixotada por um formato de tela que se fecha nos lados. Muito próxima, muito distorcida. Saltando de uma alucinação para uma fuga atormentada e de uma fuga atormentada para o dia seguinte como se o tempo tivesse sumido. 

Mas tem algo aqui que impede o distanciamento que o cinema de Larraín normalmente traz entre o espectador e essa visualidade extravagante. Algo que traz um peso legítimo aos sentimentos da protagonista. Que nos conecta com ela num segundo. Que traz à tona a tristeza profunda daquela existência de uma mulher que foi sugada para um mundo que a dominou. Esse algo é ela: a intérprete no meio desse turbilhão.

Kristen Stewart se torna, então, uma âncora sentimental que dá estabilidade a um filme que poderia ruir a qualquer momento. Tanto pela movimentação do seu corpo que concretiza ainda mais os elementos de horror corporal que o filme propõe (como se ela fosse consumida de dentro pra fora) quanto pela expressão de angústia, depressão que ela imprime em momentos chave. 

Numa cena, ela brinca com os filhos no meio da noite, à luz de um par de velas, como que para fugir dos fantasmas que a assombram durante o dia. “O que aconteceu para que você ficasse tão triste?” William pergunta. A fuga de assunto machuca mais que qualquer resposta.

Mais que triste, Kristen parece aqui cansada. Doente. Anêmica. Como se tivesse sua energia sugada por todos ali. Por isso é tão simbólica a cena em que ela invade a cozinha no meio da noite para devorar tudo o que vê pela frente. (é como se de novo a atriz vivesse alguém que está se juntando a uma família de vampiros sedentos pela sua vitalidade)

Nessa gangorra de forma e de enredo, o roteiro por vezes acaba trazendo algumas coisas que soam forçadas. Duas ou três vezes quando o filme tenta  trazer no diálogo uma ideia de tempo. De presente, passado e de um futuro que nunca existirá. Como se quisesse o tempo todo fazer das falas um prenúncio da tragédia que seria a morte dela. 

Da mesma forma, o longa não resiste à comparação dela com uma quase rainha do passado, Ana Bolena, executada no reinado do rei Tudor Henrique VIII. 

Nada que impeça Spencer de ser o melhor filme de Pablo Larraín. Pelo amadurecimento de sua estética, pelo controle lapidado de seus impulsos visuais, mas também pelas circunstâncias. Porque ele escolhe abrir mão do controle absoluto da forma ao confiar um dos alicerces importantes da obra à atuação da sua protagonista. 

É um filme que se faz justamente desse equilíbrio entre o esmero perfeccionista obsessivo do cineasta e o “abrir mão” de tudo isso quando põe o parte considerável da experiência nas costas da atriz. Funcionando, no final das contas, como um eco destas forças aparentemente opostas mas que se completam na existência da estética do filme como um todo.

spencer, inglaterra, 2022
direção: pablo larraín
roteiro: steven knight
fotografia: claire mathon
montagem: sebastián sepülveda
elenco: kristen stewart jack farthing sally hawkins timothy spall sean harris thomas douglas olga hellsing matthias wolkowski oriana gordon ryan wichert john keogh amy manson elizabeth berrington jack nielen freddie spry stella gonet richard sammel lore stefanek james harkness laura benson wendy patterson libby rodliffe niklas kohrt

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