Três personagens marginais ao seu modo, uma cozinheira preta, um estudante rico rejeitado e um historiador frustrado presos em um colégio interno no feriado de Natal em 1970. Nos EUA, no crepúsculo de uma promessa de revolução cultural e na alvorada de um período de crise social, moral e política. Tem um eco de Armageddon Time, de James Gray, aqui. No sentido de que de algum jeito o filme serve como um conto da época que originou a América de hoje. Como uma investigação da juventude de quem atualmente comanda um país em plena decadência.

A diferença talvez seja a nostalgia melancólica de Alexander Payne em oposição ao desânimo mais soturno de Gray. Porque em The Holdovers, o diretor busca justamente um retrato de uma época a partir de uma ótica agridoce do amadurecimento. Não por acaso num filme de Natal que, como os melhores filmes de Natal, é consciente das contradições inatas desse feriado. Que opõe um sentimento desolado do fim de ano com a superfície festiva de tudo. Porque às vezes nada no cinema é mais bonito que alguém depressivo iluminado pelo pisca-pisca de um pinheirinho.

Em uma cena, depois de descobrir que o jovem Angus (Dominic Sessa) toma antidepressivo, Paul (Paul Giamatti) espera ele entrar no banheiro só para que a gente descubra que ele também toma o mesmo remédio. Isso pouco depois deles deixarem a mãe enlutada Mary (Da’Vine Joy Randolph) na casa da irmã grávida. O que os une é o que eles carregam consigo. Expectativas frustradas sobre si próprios. O que um não quer se tornar. O que uma queria que o filho fosse. O que outro queria ter sido. 

Existe uma elegância no roteiro (de David Hemingson) no uso simplista do subtexto aqui. Não só a questão da época mais contraditória do ano ou do contexto histórico, mas da história como tema em si. Não só como forma de entender o passado e as origens do presente ou futuro, mas a bagagem. 

O quanto ela nos guia. Nos trava. Influencia nas nossas escolhas. Não por uma questão de destino ou determinismo. Mas pela forma como ela muda nosso olhar sobre as coisas. Seja alguém cujo erro cometido na faculdade marcou sua vida toda, alguém cujo trauma paterno paira sobre si como uma sombra ou alguém cuja expectativa sobre o futuro do filho é frustrada por uma guerra sem justificativa no outro lado do  mundo. 

Quando o filme começa. Com a vinheta setentista da Universal Studios. Dá pra ficar desconfiado. Pensar se é só um truque para abrir um filme de época. Mas conforme os créditos se desenrolam. Com um timing, um visual, um aspecto de fotografia, uma cor e uma granulação muito específicas. Dá pra perceber que Payne quer algo a mais aqui. Não só a seu modo trazer esse aspecto do passado à tona. Lidando talvez deliberadamente com aquela ideia de buscar as origens sociais do país. Mas também se curvando a um tipo de filme muito típico de parte do cinema americano da época.

Que, num contexto de ressignificação formal e temática da Nova Hollywood, trouxe também de volta um classicismo formal que de forma quase invisível (na verdade muito visível), lida com uma dramaturgia até erudita. Usando de uma decupagem de drama quase de cartilha. Que confia muito num ferramental da construção de cena com quadros que vão priorizar justamente a dramaturgia. Preciso no que a câmera mostra. Na marcação de cenas. E, talvez o aspecto que mais se sobressaia aqui, na abertura para a atuação como elemento central. 

Vale citar o tesouro que é o estreante Dominic Sessa e a estrela em ascensão Da’Vine Joy Randolph. Mas é claro que o ator cuja carreira se baseia há trinta anos na sua figura miserável e desconfortável é o destaque aqui. Vesgo, calvo, velho. Giamatti é de algum jeito o avatar de tudo isso que foi dito. Das expectativas frustradas. Das contradições. O perdedor em um filme de perdedores. Inclinado aos discursos, sermões, lições de moral e platitudes da antiguidade greco-romana. Mas tão eloquente quanto nos resmungos solitários e nas expressões que dizem tudo. 

No que deve ser um dos melhores usos de The most wonderful time of the year, de Andy Williams, da história do cinema, o refrão vem justo quando ele vê a mulher em quem está interessado receber com um beijo o namorado em uma festa da véspera de Natal.

Aliás falando em música, além de uma soundtrack brilhante que é uma marca do cinema de Alexander Payne, as quatro ou cinco músicas de Mark Orton, carregadas de uma mistura de jazz e folk rock mas carregadas de um piano solitário e de uma guitarra contemplativa abraçam o filme. E o aquecem. Como um café medíocre batizado com uma bebida barata em um inverno rigoroso e solitário. 

the holdovers, eua, 2023
direção: alexander payne
roteiro: david hemingson
fotografia: eigil bryld
montagem: kevin tent
elenco: paul giamatti dominic sessa da’vine joy randolph carrie preston brady hepner ian dolley jim kaplan michael provost andrew garman naheem garcia stephen thorne gillian vigman tate donovan darby lee-stack bill mootos dustin tucker juanita pearl alexander cook liz bishop cole tristan murphy will sussbauer carter shimp michael malvesti dakota lustick melissa mcmeekin jonathan von mering rena maliszewski osmani rodriguez oscar wahlberg dan aid mike kaz kelly aucoin colleen clinton fred robbins david j. curtis pamela jayne morgan davis robinson joe howell peter krasinski greg chopoorian ian lyons kevin fennessy kevin daigneault bhanu gopal

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