Como história, é uma extrapolação de uma pergunta milenar. Até bíblica. Estaria disposto a abrir mão de alguém que ama por um bem maior? Mas como exercício estético, é um estudo do diretor sobre o close. As possibilidades infinitas de capturar uma expressão. E a expressividade do próprio plano como potencializador. Em um filme que parte desses dois lados simplistas a seu modo, Batem à porta se torna um ponto de encontro entre uma premissa que tem uma carga enorme de cinismo e truque e uma dramaturgia que apazigua esses impulsos por uma exploração de ideais de família e amor.
O instrumental que move tudo, então são os personagens obrigatoriamente. O elo que unifica esses pontos. Que no papel sentem e vivenciam e simbolizam tudo e na tela se tornam a materialização do conceito visual. Simbolicamente, tudo se dá a partir de pessoas que cuidam se transformando em executores. Uma cozinheira, uma enfermeira, um professor, um homem culpado. Cumprindo um papel de garantidores do destino. De ceifadores. (de cavaleiros do apocalipse, claro)
E a família é o núcleo de ensaio para tudo. A síntese da civilização humana.
Não deixando de lado, reconhecendo a questão de que é uma família gay quem sofre as consequências dos problemas do mundo aqui, mas suspendendo a problemática para pensar neles pela perspectiva de análise, o trio se torna um resumo de família perfeita e amorosa. O “espantalho” argumentativo que é sempre usado como ferramenta de discussão: “proteger a família” ; “a importância da família”; etc.
Se pensarmos em mídia, jornalismo, discurso, é sempre isso usado como forma da imprensa ilustrar a mensagem. A família desfeita pela tragédia, a dificuldade das famílias em sobreviver a algo, as famílias atingidas pela pandemia. A família separada pela polarização política. Etc etc etc.
Em um filme pontuado e demarcado em questão de estrutura dramática, pela entrada das imagens midiáticas televisivas sobre o acontecer do apocalipse.
Para Shyamalan, mais que um casal gay com uma filha, mais que Eric, Andrew e Wen, mais que essas pessoas, o grupo é um representante dos laços humanos. Assim como ele fez com mãe e filho em Sexto Sentido, com gerações de irmãos em Sinais, com o casal que envelhece junto em Tempo e até em organizações mais de comunidade e menos de parentesco em A vila e Dama na água.
Em uma obra que se passa no fim de tudo, é como se a existência dessas pessoas como parte central simbolizasse o início dos tempos humanos. A ideia basilar e científica de que foram estas conexões e estas relações de sangue e de cultura que nos permitiram enquanto espécie dominar o planeta e de que é o rompimento brutal de vínculos assim que pode nos fazer lembrar desta dádiva.
Na tela, o diretor reflete sobre também uma ferramenta simplista. Assim como no drama, o filme existe a partir do fragmento mais básico da civilização (a família); na forma, ele se materializa a partir do plano fechado. Do plano e contra-plano. Entre as primeiras técnicas que quando criadas só poderiam existir na ideia do audiovisual, que distanciam o cinema do teatro e de outras artes narrativas.
É a mesma essencialidade traduzida em filme e em palavra, em ideia. Enquanto a grandiloquência de ideias e drama se dá menos pelos encontros nesse espaço e mais em alusões de diálogos e em flashback; as grandes cenas com complicações possíveis nunca são vistas aqui dentro da “cabana do fim do mundo”. Numa recusa inclusive de mostrar qualquer um dos atos de violência que se repetem.
Voltando à pergunta inicial: abrir mão de alguém pelo bem maior? Para salvar a humanidade? Esta humanidade? O filme faz uma escolha.
Não é porque os laços amorosos são a base de tudo que a existência das chagas humanas é negada. Que a violência do mundo, a doença da civilização, está menos presente. O filme parte disso, demonstra isso, abraça a ideia de que a história degringolou no meio do caminho. A gente vê isso pela tragédia da televisão. Como se as telas que a gente traz para casa fossem emissários do armagedom.
Que traz ecos assombrosos da nossa realidade. Da pandemia. De todo mundo que sobreviveu à epidemia global e para tanto pagou o preço de assistir às imagens da morte materializada na multiplicação de covas capturadas por imagens de drone. Sete milhões de mortos. (oficialmente)
Também lembra a tragédia climática. Uma captura por vez do planeta morrendo passando pela timeline. Até que um dia é a gente que vai se ver gravando uma floresta em chamas.
Reflexões à parte, o filme lida com a parte humana disso como a mais brutal. A violência que é algo como um câncer social em metástase. No flashback, o casal é agredido por existir. E a ideia aqui, que o diretor toma ao rejeitar o final do livro de origem e abraçar uma nova ideia para a adaptação, é de rejeitar a questão do acaso.
Spoiler do fim do romance: lá, quem morre é a menina, sem querer, com uma bala perdida, o que resolve o conflito. No filme, spoiler, não só o acontecimento muda como toda a ideia.
O desfecho rejeita a ideia de aleatoriedade e abraça então o martírio como purificação. Porque quem morre aqui, morre porque estava doente. Porque foi pego pela violência. Porque estava pronto para espalhar essa chaga. Para ser um portador do mal da humanidade.
knock at the cabin, eua, 2023
direção: m. night shyamalan
roteiro: m night shyamalan michael sherman steve desmond
fotografia: jarin blaschke lowell a. meyer
montagem: noemi preiswerk
elenco: Dave Bautista Jonathan Groff Ben Aldridge Kristen Cui Nikki Amuka-Bird Rupert Grint Abby Quinn Clare Louise Frost McKenna Kerrigan Odera Adimorah M. Night Shyamalan Ian Merrill Peakes Denise Nakano Rose Luardo Billy Vargus Satomi Hofmann Kelvin Leung Lee Avant Katy Murphy Kittson O’Neill Lya Yanne Hanna Gaffney Monica Fleurette Saria Chen