Vale dizer antes de tudo que este texto é escrito considerando só os três primeiros filmes.
Começa simples. Em 2014. Com um filme que até se empalidece perto das continuações. Um homem que busca vingança contra a máfia russa novaiorquina porque teve o cachorrinho morto por um integrante desavisado da organização. É um clichê que tem suas maiores forças na presença de Reeves como um dos astros mais queridos dessa geração e no até então conhecido só por quem se interessa por dublês, Chad Stahelski. (não por acaso, dublê do próprio Keanu na trilogia Matrix, Constantine e o Homem do Tai Chi)
Tem um bom bocado de cenas impressionantes. Boas perseguições, bons embates numa boate. Ossos quebrados, coreografias caprichadas, mas mais que isso, uma mitologia. Um policial que vai verificar o barulho (de John matando cinco ou seis capangas com as próprias mãos) e pergunta “você voltou a trabalhar?”; um santuário: o hotel onde negócios não podem ser feitos; moedas de ouro como uma espécie de objeto de transação impossível de rastrear; e preocupação, espanto, surpresa, com a menção do nome do protagonista. Como se a simplicidade do que a gente vê deixasse escapar de algum jeito uma organização que existe debaixo do nosso nariz.
Estruturalmente, o que a série se tornaria vem muito do peso desses dois lados. O mítico, de trama, de enredo, desse personagem como o bicho papão deste mundo; e o de ação. Bruto, super desenvolvido, completamente minucioso em questão de coreografia e completamente reverente a um cinema pioneiro, primitivo e de atração.
O clichê do homem vingativo e o submundo mitológico de onde ele saiu
Pensando em premissa, mesmo com o expandir de tudo (ação, história, tamanho), os filmes operam todos sob tramas muito simplificadas. Embora, diferente da outra melhor franquia da atualidade – Missão: Impossível – aqui a ordem dos filmes importa e a missão, embora simples, sempre surge como um desenrolar direto do anterior. O primeiro filme como vingança pura e simples, o segundo como uma ponta solta deixada por ele no passado e o terceiro como consequência de como o filme 2 se encerra. Com negócios sendo realizados onde não deveriam.
Por mais complicado que o universo possa parecer, como se todo mundo soubesse de tudo de algum jeito, a simplicidade das estruturas mantém esse mundo muito vivo. Existe uma alta cúpula. Existem, sob ela, facções independentes entre si que a sustentam.
O hotel Continental de Ian McShane, Halle Berry, Franco Nero e os outros gerentes ao redor do mundo, que oferece santuário; a Ruska Roma, das bailarinas e lutadores órfãos de Anjelica Huston que oferece a força de trabalho; a Soup Kitchen, dos mendigos e pombos correio que circulam por entre as frestas do capitalismo falido nova-iorquino, de Laurence Fishburne; e até mesmo Berrada, personagem que comanda a “casa da moeda” que forja as moedas de ouro e as promissórias em Casablanca. (um dos purgatórios mais simbólicos do cinema)
Poeticamente, é como se ele primeiro voltasse à ação por motivos pessoais e, depois de sugado por sua existência de anjo da morte, não conseguisse mais sair de lá. No terceiro filme, em um momento, o ancião pergunta o porquê dele permanecer vivo, ele diz que é para lembrar da esposa. E então lhe oferece a escolha. Se é isso que ele quer, o que ele tem que oferecer em troca é sua alma, sua existência, seus serviços de ceifador. Para sempre.
A ação. Gravidade, brutalidade e mito
Com tudo isso levado em consideração, entretanto, é na ação que o personagem é moldado. Partindo do arquétipo do caladão discreto que não quer esfregar suas habilidades na cara dos outros mas que, se necessário, é capaz de matar todo mundo com as próprias mãos e se adaptando para o filho de Bielorrússia que vive uma tragédia grega aqui, ele se torna um personagem que de alguma forma ecoa algo da ação contemporânea. Iniciando em um filme realista e mais bruto mas se transformando no caminho.
Conforme ele vira algo como um ser mitológico (o assassino imparável Baba Yaga) a ação também muda de forma. Se no primeiro é algo tipo 007 ou Jason Bourne, mais para frente, o filme parece curtir mais a ideia da ação pela ação. A coreografia por si. Cada vez fazendo menos sentido pelo viés realista e mais pelo de um cinema que existe não contando uma história com momento de ação, mas concebendo uma narrativa ao redor destes momentos.
Fazendo de Reeves e de seu personagem abertamente e declaradamente um seguidor ou descendente de outros astros audaciosos. De Buster Keaton a Jackie Chan, passando por Bruce Lee mas também por Harold Lloyd, Gene Kelly, Fred Astaire e todos esses representantes da fisicalidade no histórico da arte. O segundo filme mesmo, que parte de uma perseguição impressionante em Manhattan não esconde a projeção da cena de Keaton na motocicleta em Sherlock Jr (1924) num prédio em alguma esquina da cidade.
A perseguição de um carro em um porto logo se torna, então, uma cavalgada contra motociclistas em Nova York; as armas que ele encontra por aí logo se transformam em momentos de escolha, discussão de calibres e funções e leveza e capacidade e toda essa baboseira; as facas táticas se tornam machadinhas, katanas, wakizashis (as versões mais curtas de katanas samurai que o personagem de Mark Dakaskos usa no terceiro filme).
Em um momento, fugindo para dentro do antiquário, o filme cria um suspense a partir do ato de John desmontando e remontando revólveres antigos, misturando peças e preparando uma bala só para dar um tiro. Da altura da cintura. Como um cowboy.
Tudo a partir de grandes cenários. Espaços que criam arenas labirínticas para o desdobrar da ação brutal mas que também dizem algo por si. Seja o mercado marroquino, as salas espelhadas do segundo filme que materializam um simbolismo de John olhando para si próprio ou o escritório completamente transparente de vidro blindado do terceiro; que vira um comentário por si sobre o revelar desse mundo oculto que existe por detrás da solidez da realidade.
Aspectos que se montam para uma estrutura de jogo.
Gamificação, recompensas, fases e chefões
Tirando uma página da bíblia de Paul W. S. Anderson sem querer ou por querer, tudo narrativamente em John Wick se organiza para uma lógica muito próxima do videogame de ação. Pelos espaços, pela lógica de evolução e mesmo pelos símbolos. Como se Jonathan estivesse sempre passando de fase, subindo de nível, recolhendo artefatos.
No primeiro, buscando recuperar um carro e lutando contra gangsters; no segundo em uma missão paralela para poder sair desse mundo, eliminando um alvo e lutando contra outros assassinos, seus pares; e no terceiro, com as consequências sobre seus ombros, se voltando contra a própria instituição. Ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, ao invés de evoluir o porquê da sua luta para prêmios maiores, ele acaba essencializando suas razões e objetivos. Não é o mundo que está em jogo. É ele. E ele só quer viver para que possa se lembrar da sua amada.
Dentro dos filmes, esse jogo de chefões e capangas também se repete. Principalmente a partir do terceiro, onde ele começa contra outros caras igual ele e logo se vê contra grupos de níveis superiores. Como a gangue de espadachins japonesa. Com Cecep Arif Rahman e Yayan de The Raid como preparação e Mark Dakaskos como “Boss”.
Integrando nisso tudo uma ideia de RPG. Com pausas para preparação, armas especiais, relíquias carregadas de importância. O “ticket”, que é o rosário quebrado pela Ruska Roma; a “promissória” que lhe permite convocar uma aliada; e as moedas, claro, que não fazem o menor sentido pensando pelas suas funções monetárias, mas que funcionam completamente dentro da lógica de recompensa. Além da ligação óbvia com o mundo dos videogames.
De quebra, tudo isso funciona sob uma lógica de materialismo que faz parte de toda essa franquia de algum jeito. A ideia do assassino como pessoa que existe a partir de sua função de eliminar outrem; a tragédia do homem que quer se ver livre de um sistema que o aprisiona; o avançar de um herói que mais e mais se aproxima de uma ideia de atirar para cima. Se voltando contra esse próprio sistema. Usando o mithos e a força que extraiu dele para implodir tudo isso.
Ao lado de facções rebeldes e numa busca que, por mais simbólica que seja, se desdobra enquanto obra de ação, se desdobra a partir de uma série de filmes dirigida por um dublê. Que representa de alguma forma toda uma classe sobre a qual o cinema comercial se apoiou durante tanto tempo.
john wick, 2014, 2017, 2019,
direção: chad stahelski david leitch
roteiro: derek kolstad chris collins marc abrams shay hatten
fotografia: jonathan sela dan laustsen fraser taggart
montagem: elísabet ronaldsdóttir evan schiff
elenco: keanu reeves michael nyqvist ian mcshane john leguizamo willem dafoe alfie allen dean winters adrianne palicki lance reddick bridget moynahan david patrick kelly randall duk kim munro m. bonnell omer barnea toby leonard moore daniel bernhardt bridget regan keith jardine tait fletcher thomas sadoski clarke peters kevin nash gameela wright vladislav koulikov patricia squire kazy tauginas vladimir troitsky matt mccolm scott tixier alexander frekey carolyn blair samantha crawford nadia kay natalia kiriya tommy bayiokos j.j. perry dennis keiffer alex ziwak erik martin common laurence fishburne riccardo scamarcio ruby rose peter stormare franco nero claudia gerini wass stevens peter serafinowicz luca mosca tobias segal thomas sadoski chukwudi iwuji yama erik frandsen david patrick kelly perry yung youma diakite midori nakamura mario donatone giorgio carminati elli thaddeus daniels margaret daly christine hollingsworth ciscandra nostalghia vadim kroll simone spinazzè chris lapanta guyviaud joseph diane gooch alisa ermolaev kelly rae legault joan smalls basil iwanyk sr. airon armstrong nico toffoli aaron cohen aly mang nora sommerkamp marmee regine cosico nancy cejari kitty crystal jennifer dong sidney beitz mark vincent justin l. wilson shade rupe heidi moneymaker angel pai johnny otto nobuya shimamoto oleg prudius alex ziwak bruno verdirosi ottaviano dell’acqua tim connolly kenny sheard stephen dunlevy niko nedyalkov bill walters halle berry mark dacascos asia kate dillon anjelica huston tobias segal saïd taghmaoui jerome flynn randall duk kim margaret daly robin lord taylor susan blommaert jason mantzoukas cecep arif rahman yayan ruhian roger yuan tiger hu chen boban marjanović unity phelan andrea sooch sergio delavicci tiler peck baily jones india bradley olivia mackinnon sarah villwock eliza blutt harrison coll maxim beloserkovsky charles askegard stefaniya makarova jeff g. waxman aïssam bouali mustapha adidou alexey golousenko jon valera hiroo minami dana schick shade rupe