Menos sobre os peixes e mais sobre os homens, O mundo do silêncio parece um estudo de Louis Malle sobre a superfície. Isso enquanto é se apoia em uma exploração imagética das profundezas e pondera sobre como é o papel do cientista circular sobre os espaços paralelos e espelhados. Um de de brutalidade, outro de beleza intocada.
Curiosamente o que demarca esse filme historicamente é o interesse duplo do cineasta e do biólogo marinho Jacques Cousteau – maior celebridade da biologia marinha de todos os tempos – na captura dessas imagens então consideradas algo impressionante e nunca antes visto. Câmeras submersas a muitos metros de profundidade sedentas pelos mistérios oceânicos. Pelo mundo “do silêncio” como o título destaca. Marcado pela beleza dos cardumes, pelas estruturas dos corais, pela lógica natural de um mundo que existe à margem do nosso.
É a primeira mudança da água para o barco que já denuncia algo que pode parecer um ruído para um documentário “estilo National Geographic ou Discovery”. Mas que se encaixa em uma lógica de contraste para onde esse filme de algum jeito sempre volta. O momento em questão, depois de uma abertura que mostra toda a equipe de mergulhadores saindo da água, em fila, voltando para Calypso, o barco de Jacques Cousteau, é quando surge a imagem da embarcação ligando os motores para seguir em frente.
Uma tomada do escape de fumaça escura do motor a combustão alternada com outra da casa de máquinas, onde o mecânico gira uma série de manivelas e puxa algumas alavancas. Fumando um cigarro, óbvio.
Cria uma diferenciação entre o mundo exuberante nunca visto no audiovisual e o nosso mundo – se me permitem: coisa que James Cameron homenagearia ao seu modo 53 anos depois com Avatar, com o choque entre a realidade militar do protagonista e o mundo Na’vi.
Mas Mundo do Silêncio também apresenta uma lógica que pode ser incômoda vista de hoje. Da ciência como algo inevitavelmente invasivo, com meios violentos que serão justificados pelos seus fins. No meio disso, de vez em quando, o filme vai querer apresentar seu didatismo com diálogos mal dramatizados que buscam explicar os processos. Narrações que falam de cada ferramenta e que buscam dar conta do que as imagens mostram. Mas que são só periféricas a essa coisa central dos mundos separados um do outro e da violência inerente que faz parte daquele dia a dia.
Entre a beleza dos corais e o bucolismo do cachorro salsicha gordo rolando por causa do movimento do barco: enseadas dinamitadas para revelar o conjunto de espécies de peixe em um determinado local; uma baleia ferida e destroçada por tubarões; tartarugas incomodadas pela presença humana debaixo e em cima da água; e os tubarões em si, atacados sem dó, a marretadas, pelo grupo de marinheiros que parece um grupo de crianças sem um guia.
Em outros momentos, um peixe gordo é adotado e batizado de Jojo, em um momento lúdico do estudo de anêmonas e de cardumes de uma determinada localização. Entre uma coisa e outra, o filme pode até ser condenável visto com olhos anacrônicos.
Digno de um aviso nesta era de alertas de gatilhos do audiovisual. Mas é algo que traz uma crueza e um realismo documental que muita gente deixaria de fora hoje em dia. Desnecessário por certas perspectivas, mas potente por outras justo por não deixar esse lado de fora. Capturando mais que a curiosidade da vida bonitinha dos peixes oceânicos, as idiossincrasias de como a humanidade por si é algo que afeta a ciência direta ou indiretamente.
le monde du silence, france, 1956
direção: louis malle jacques cousteau
roteiro: jacques cousteau
fotografia: edmond séchan philippe agostini louis malle jacques cousteau
montagem: georges alépée
elenco: jacques-yves cousteau