Memória sufocada_ (o “_” se mostra importante para descrever o que o filme é) soa quase experimental dentro do cenário saturado de documentários políticos brasileiros. Meio que todo mundo já sabe e todo mundo já disse em filme e em vídeo sobre ditadura, Bolsonaro, golpe, corrupção etc. 

A linha aqui é certeira, da anistia da ditadura como uma desgraça que fundou uma democracia que nunca será democrática de verdade até romper com as estruturas fascistas que ainda se mantém. Os paralelos entre o (felizmente agora ex) presidente fascista e o regime que ele amava. O perigo e a repetição das mesmas coisas com um espaço de sessenta anos. 

Essa parte é um desespero. Noticiários e análises de como o país está dividido entre esquerda e direita, o combate ao perigo comunista, o apelo populista ao conservadorismo. Anos 1960 = anos 2010. Como se o Brasil vivesse em um ciclo infernal de repetição dos próprios erros. No meio do período onde o filme foi lançado, às vésperas de uma eleição que questionava a nossa população se nos afundaremos na barbárie ou tentávamos sair dela, isso deve ter sido desesperador. Mas visto agora, com um certo alívio (mais ou menos), dá para prestar mais atenção na forma. O que não sei se é bom, mas ao menos é fruto de alguma ideia.

Dá pra entender quem não gosta. É muito leve pra um tema tão horrível. Tudo tem um tom semi irônico de discussão de Twitter em um filme de imagens de arquivo que dá alt tab nessas imagens literalmente. Com um formato de cinema de desktop. 

Na teoria pode não ser muito apropriado ou pode causar um distanciamento de um assunto que ainda é uma ferida aberta, mas na prática soa como uma checagem de fatos ao vivo. Um torturador diz algo em um depoimento, um áudio de arquivo vai comprovar o contrário. Uma vítima faz alusão a influencia norte-americana,  um download do site da CIA vai comprovar isso. Funciona bem e tem um dinamismo que põe os pingos nos is e desmonta as teorias conspiratórias comuns. 

Quando é bom, é inspirador. Dá impressão de que deveria ser visto em sala de aula, na tela quente, exibido por aí pro máximo de gente possível. Muito utópico em uma sociedade açoitada pelo neoliberalismo e a falta de controle que deixa as demandas capitalistas distorcerem tudo. Uma escolha que a gente fez quando tentou varrer esses crimes para debaixo do tapete.

Mas quando não é bom, soa meio perdido. Da parte do tema, pega dois ou três depoimentos para representar o todo de uma ditadura. Foca muito na imagem de  Ustra e ao mesmo tempo tenta ser amplo. Usa vídeos do DOI-CODI abandonado e uma música de terror que não cabem no tom mais “despojado” (dadas às proporções), que o filme tem como um todo. E ainda pensando nessa ideia da checagem, é estranho estruturalmente. Se tornando cansativo de algum jeito e de outros dando impressão que poderia durar mais de dez horas.

Pensando em como documentários são um encontro entre arte e jornalismo, o aspecto cinematográfico se impõe aqui como um delimitador. Fechando uma estrutura que começa no golpe, passa pela tortura e finaliza na anistia. Não sem antes trazer algumas tendências atuais do estilo, como os números projetados nas ruas de São Paulo tipo “x mortos, y indígenas torturados e etc.

Por mais que seja formalmente um tanto banal, no frigir dos ovos, não dá para dizer que ele foge de sua proposta. É evidentemente um manifesto e para tanto ele consegue chegar em todos os objetivos que sugere. 

No fim, nos lembra do mais básico e da importância da comissão da verdade naquele primeiro governo Dilma, funcionando como uma reafirmação de que a memória e a verdade existem. E que elas estão acessíveis. Pelo menos isso.

memória sufocada, brasil, 2023
direção: gabriel di giacomo
roteiro: gabriel di giacomo
fotografia: bruno graziano
montagem: gabriel di giacomo

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