No seu filme mais gélido até então, Todd Field faz uma ponderação sobre a cultura de abuso, a ideia do cancelamento, e o lado humano e monstruoso do arquétipo do artista. Dando conta da complexidade do tema mas sempre se submetendo ao estudo dramático da personagem título. A quem ele trata como uma criatura das sombras, recolhida ao seu covil escuro que é o apartamento de concreto ou ao seu labirinto de carvalho que é o salão pentagonal da filarmônica de Berlim.

Lydia Tár, a maestrina ou “a maestro” como ela prefere, caminha muitas vezes por esses cenários apagando as luzes ao seu redor. Requisitando ao técnico da sala a diminuição da iluminação. Escolhendo os túneis e lugares mais escondidos. Sempre enquadrada a partir das sombras em composições precisas de quadros de uma decupagem muito clássica. Ou, quando exposta, coberta pelos casacos gigantes e óculos escuros como a grande vampira que ela é de alguma forma simbólica. 

Por mais de dois minutos, quando ela é apresentada para uma entrevista em Nova York onde ela anuncia o lançamento da autobiografia e a gravação de um álbum onde ela reinterpreta Mahler, o filme nos apresenta a um currículo de alguém absolutamente genial em seu campo. Por mais de duas horas, depois disso, ela nos é revelada como uma grande artista, obcecada, perfeccionista e completamente apaixonada pela música, que parece ser a única coisa com a qual ela se importa. Mas também como uma abusadora levada pelos próprios caprichos. Desprovida de qualquer empatia. 

Não me surpreenderia descobrir que o argumento aqui veio antes como um estudo de um personagem homem. Um cara que assim como outras histórias fora da tela abusa de seu talento e poder. Não são poucos os ecos da vida real revelados no me too ou muito antes disso. De artistas violentos e perigosos que usam de seu poder para alimentar seus instintos e impulsos sem a menor consideração para a  vida dos outros.

O fato de ser uma mulher lésbica que calça estes sapatos, entretanto, é o que nos permite a maior aproximação desta premissa. 

Existe um certo desconforto propositivo aí. Uma provocação que repete outras que o filme sempre coloca na nossa frente. A personagem é como é, afinal, por ter se estabelecido em um mundo masculino usando um ferramental masculino. Agindo como homem. Para o bem. Para o mal. Aprendendo com os mestres. A compor, a sobreviver no labirinto da música clássica e a abusar, pensando nos outros como ferramentas para o galgar dessa carreira. “Relações transacionais”, como a esposa acusa em algum momento. 

As roupas, a pose, o fato de que ela refere-se a si mesma como “pai”, como não sabe quando é o dia internacional da mulher e como rejeita ser referida pelo feminino de maestro. Tudo fortalece essa autoimagem que ela faz de si.

O que de algum jeito a deixa incomodada quando percebe nas mulheres mais novas de quem ela é “mentora” uma ausência dessa violência que ela precisou absorver para se tornar quem é. Como se pensasse “por que é ser tão fácil pra elas?” (não é)

É muito nos figurinos que o filme comunica. Nos cenários. Na luz. Na cor ou na falta de.

Em uma obra que basicamente se dá a partir de uma mesma atriz circulando pelos mesmos lugares, a roupa de ginástica e os ternos, não os “terninhos”, mas os ternos sob medida precisam comunicar muito. Quando trazem esse peso masculino a ela e quando, por serem tão ajustados e sob medida, permitem a Cate Blanchett abusar de uma atuação corporal. Repleta de cacoetes e de TOC e de posturas curvadas que muitas vezes materializam bem essa ideia de uma criatura astuciosa. Fora o óbvio: as várias cenas em que ela comanda a orquestra que remetem até mesmo ao Pernalonga. Agigantada pelo plano que a captura de baixo pra cima.

(em uma cena: um médico até recomenda que ela busque um quiroprata porque está “torta”, depois de um acidente na rua)

Não fossem por detalhes, poderia muito bem ser confundido com um filme preto e branco. A partir das roupas escuras e dos cenários dos locais que ela própria decora, em uma sofisticação blasé e feita de cores neutras. O que remete a ideia da frieza da personagem. Robótica. Apática. E que, quando acuada, acusa as pessoas exatamente disso “robôs” de uma geração perdida ou coisa assim.

A construção visual, que pra muita gente pode não parecer muita coisa, usa muito dessa falta de cor. Não é por acaso que em algum momento, numa busca pela conexão com um lado mais humano, ela vá vestir um terno marrom puído. Nem é sem querer a quantidade de espelhos que a cerca, ou a forma como ela sempre parece estar atormentada com sons estranhos, mensagens ocultas. 

Tudo que o diretor materializa sem abrir mão de um filme muito naturalista na superfície mas muito atento aos aspectos formais da coisa. É como um terror de cotidiano dentro de um mundo banal. Sem fantasmas ou aspectos paranormais mas com expressões cinemáticas sinistras. Como quando ela se vê em um prédio abandonado labiríntico com um cachorro enorme. Algo saído de uma história mitológica. 

A obra então se desdobra a partir dessa construção e desconstrução de uma personagem clássica muito a partir de um uso arquetípico e até simples de como a visualidade dessas pessoas e destes cenários é construída. 

Com cenários e situações aparentemente banais mas que não escondem um cineasta que é muito ligado ao poder da visualidade desses retratos sociais. Coisa que ele já fez antes em seus filmes anteriores tanto a partir de uma concentração maior nos meandros da situação em um filme de lógica mais melodramática como Entre Quatro Paredes quanto em um filme repleto de cenas que parecem satirizações de cartões postais o sonho americano como Pecados Íntimos.

Isso sem nunca abrir mão da discussão que o subtexto carrega do início ao fim sobre as monstruosidades que existem sob a superfície da produção artísticas. Como as pessoas mais horríveis são capazes de produzir as coisas belas.

tár, eua, 2022, 2023
direção: todd field
roteiro: todd field
fotografia: florian hoffmeister
montagem: monika willi
elenco: cate blanchett nina hoss noémie merlant sophie kauer julian glover mark strong sylvia flote mila bogojevic allan corduner fabian dirr vincent riotta sam douglas lucie pohl vivian full lee sellars ed white christoph tomanek frank röth diana birenytė andré röhner jessica hansen murali perumal sydney lemmon dorothea plans casal jan wolf peter hering artjom gilz marie-lou sellem marie-anne fliegel jasmine leung chalee sricharoen lydia schamschula tilla kratochwil zethphan smith-gneist adam gopnik alec baldwin

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s