Carregando a tradição do noir de que o sentimento de mal-estar representa melhor o gênero que qualquer traço visual ou de trama, Bill Duke traz essa sensação de desesperança para o paradoxo das comunidades negras norte-americanas dos 1990s. Num mundo de super otimismo e consumismo pós guerra fria que só fez agravar as tensões raciais periféricas da dita maior democracia do planeta. Isso enquanto faz tudo isso com, sim, um bocado de traços visuais expressivos e com uma trama que adequa os males da guerra às drogas a um formato arquetípico do policial durão infiltrado.
Laurence Fishburne ainda na sua fase Larry Fishburne aqui, é um detetive com um trauma específico que o fez se afastar justo da lógica da política de extermínio às populações negras dos EUA liderada por Reagan, Nixon e o financiamento de narco-ditaduras da América central. Que de um lado financiou – muitas vezes com dinheiro de plantio e processamento de coca – golpes de estado em países a fim de evitar a expansão socialista da região; enquanto do outro ajudou a solidificar uma polícia fascista que “para servir e proteger” só servia e protegia uma parte da cidade em detrimento de outra, que consumia esse produto centro americano justamente para suportar essa realidade.
O melhor de Deep Cover (ou Traindo o inimigo), no entanto, é que isso nunca se torna um discurso panfletário que se expressa para além das angústias do protagonista que, como em todo bom filme de detetive infiltrado, precisa caminhar pela linha tênue prestes a se romper entre o que ele acha ser o bem e o mal. Mas que descobre tarde demais serem só faces do mesmo sistema destrutivo.
Em um momento do terceiro ato, o detetive de Fishburne confronta o delegado de Charles Martin-Smith: “eu não sei mais se sou um policial fingindo ser um traficante ou se sou um traficante fingindo ser um policial”. Bill Duke filma isso de um ângulo que demonstra a força de um homem 20 centímetros mais alto que outro, que está acima dele na hierarquia mas que em qualquer leitura estética se revela como um parasita minúsculo que vive daquele mesmo sistema.
Os figurinos de Fishburne com ombreiras largas e jaquetas estilo “bomber jacket” que fazem seu torço parecer mais largo ainda e revelam sua presença dominante, ao passo que o outro usa sempre ternos curtos, apertados, mal cortados, que o fazem parecer menor ainda.
Na cena, Fishburne usa uma camisa vermelha. E ao fundo um prédio é iluminado por uma luz da mesma cor. O que talvez seja o elemento visual mais marcante de um filme que traz as raízes expressionistas do Noir para uma contemporaneidade maneirista e pós moderna dos anos 1990. Então coisas que podem só parecer luzes bonitas e quadros bem compostos na maior parte do tempo comunicam algo com essa veia formalista.
A cor vermelha relacionada à sua vida policial (como a equipe iluminada por uma luz assim que acompanha uma transação em um estacionamento) e a azul relacionada à sua vida traficante, sempre vestindo jaquetas dessa cor. Principalmente a jaqueta jeans no primeiro ato. (ou em um momento em que ele foge de viaturas policiais dirigindo uma limusine que enquadra um dos vilões do filmes enquadrado sobre o vidro traseiro do veículo iluminado por uma luz azul). E em momentos chave, de fragilidade, usa o amarelo; e em momentos de ódio, preto.
Parece uma lógica primária. É uma lógica primária. E funciona por causa disso mas não só.
Porque enquanto esses aspectos operam subjetivamente e cosmeticamente; o diretor nunca deixa de encontrar a força dramática de uma decupagem clássica ou de uma subversão da decupagem clássica. Como em uma cena onde algo trágico acontece e um diálogo entre o protagonista e um agente do FBI começa filmado da forma tradicional de um plano e contra plano que põe os personagens em lados opostos do enquadramento mas que com o avançar da conversa os coloca do mesmo lado. Além de confiar muito da obra na direção do elenco. Num dos melhores papeis da vida de Fishburne.
Tal qual a complexa composição desse personagem que resulta das muitas identidades que ele acumula, Deep Cover traz consigo a mesma multiplicidade de origens temáticas e formais. Se tornando ao mesmo tempo um filme manifesto sobre a política de guerra às drogas e uma obra que une o maneirismo oitentista, o expressionismo do cinema de estúdio dos anos 1940 e uma dramaturgia clássica que sustenta tudo isso.
deep cover, eua, 1992
direção: bill duke
roteiro: michael tolkien henry bean
fotografia: bojan bazelli
montagem: john carter
elenco: laurence fishburne jeff goldblum charles martin smith victoria dillard gregory sierra glynn turman clarence williams iii kamala lopez lira angel rené assa bruce paul barbour bilal bashir anna berger joseph ferro sandra gould roger guenveur smith james t. morris sydney lassick paunita nichols def jef clifton powell yvette heyden vicellous reon shannon