Verhoeven entendeu o Noir. Um gênero que é demarcado por tantos limites concretos e elementos obrigatórios como armas, escuridão, corrupção, femme fatales etc. Mas que não é o tipo de coisa que dá tão bem pra definir quanto dá pra sentir. Porque por mais que existam grandes representantes do estilo que não tem alguma ou algumas dessas coisas da lista, quase todos eles têm em algum nível mal estar ou de tesão. E Instinto Selvagem é sobre isso.
Das maiores psicopatas do cinema pós-moderno e ao mesmo tempo uma das femme fatales que sintetizam o conceito, Catherine Tramell é o centro gravitacional de um filme que até apresenta e de alguma forma circula pela sua trama criminal mas que está mais interessado na exploração imagética e erótica desse e de outros arquétipos como o do detetive traumatizado feito de gato e sapato pelas circunstâncias.
As duas críticas mais feitas à obra falam da misoginia do filme e da indecisão sobre a mulher no centro de tudo. Porque Instinto Selvagem parece nunca saber se a defende ou se a condena. Mas tem algo menos típico do cinema de Verhoeven que escolher algum desses lados? O filme realmente não se decide quanto a isso porque está mais filiado ao desfile de signos visuais e de planos exploratórios desses que são quase não personagens. Indo tão longe quanto fazer do erotismo uma costura da experiência.
Logo se pensa na vulva exposta de Stone centralizada no meio da cruzada de pernas sob o mini vestido branco no interrogatório, mas o fato é que a exploração desse corpo vem desde a primeiríssima cena que vem emendada nos créditos da transa tórrida e intensa que precede a violência brutal das estocadas de um picador de gelo. Depois o filme faz o mesmo quando a encontra na mansão. E depois quando, enquanto se troca para ir ao interrogatório, ela é observada pelo detetive (e por nós) por um espelho bem posicionado no quarto.
Sempre observada, sempre à mercê do nosso olhar mas ainda assim sempre um passo à frente de qualquer um. Refletida em superfícies espelhadas ou em telas, fazendo perguntas provocadoras, enquadrada por paredes envidraçadas enquanto se despe, respondendo a um teste de polígrafo numa sala inacessível enquanto encara onisciente para a quarta parede dos monitores que mostram suas filmagens. Como se enxergasse para além da caixa onde ela é colocada dentro da narrativa e mesmo metalinguisticamente. Multiplicada até mesmo pelas lentes dos óculos estilo aviador do personagem de Michael Douglas.
Em se tratando do detetive, a gente sabe de algum trauma passado que o fez se tornar um policial abstêmio que busca se encontrar naquela cidade. Com a relação complicada com a terapeuta da polícia de San Francisco e uma certa ‘atração fatal’ pela suspeita desse caso. Atormentado por duas mulheres em algo que soa como um eco de Um corpo que cai.
Mas menos deliberado e chamativo que De Palma em Dublê de corpo, Verhoeven tem uma obsessão formalista pelo filme de Hitchcock que contém Instinto Selvagem numa aparência de um cinema mais preciso. Aludindo à cidade, às imagens da loira e da morena que espiralizam a vida emocional do protagonista mas de uma forma mais contida.
Mesmo que tenha seus traços maneiristas na forma como cobre cada cena com quase uma dezena de planos que se montam para sequências precisas e evocativas daquilo que define sensorialmente o gênero. Tesão. Mal estar. Brincando, aliás, com a ideia da repetição e de como o protagonista se enrola com o tempo, parando na mesma posição e respondendo às mesmas perguntas na mesma sala de interrogatório sob os mesmos enquadramentos que Catherine meia hora antes.
Dá pra pensar nas relações daqui muito a partir da máxima atribuida a Oscar Wilde de que tudo no mundo é sobre sexo exceto sexo, que é sobre poder. Nick estupra a personagem de Jeanne Tripplehorn e a domina emocionalmente para depois ser dominado por Catherine. Roxy é rejeitada e tenta descontar violentamente no culpado por atribular sua relação, mas acaba sofrendo as consequências disso.
É visível o porquê de quem trata essa como uma obra misógina. O filme tem três personagens femininas reduzidas a arquétipos fetichizantes – a lésbica durona, a femme fatale, a profissional séria – e outra, mais velha, que embora fuja do arquétipo sensual direto, quando interpretada por Dorothy Malone remete ao seu papel no clássico noir Á Beira do Abismo onde ela própria era o equivalente da gostosa naquele contexto. Uma vendedora de livros que chama Humphrey Bogart para os fundos da loja pra fazer algo que só ficava na nossa imaginação.
Não que o detetive Nick ou os outros investigadores sejam muito mais que estereótipos também. E não que o sexo enfraqueça de alguma forma a femme fatale que é mais explorada aqui. É uma via de dois gumes. Um paradoxo de algum modo. Um filme que empodera a sua protagonista pelo sexo, pela nudez, pela sensualidade e, para tanto, despe e explora de muitas formas o corpo da intérprete. E mesmo que busque de algum jeito fetichizar um Michael Douglas já maduro, nunca vai tão longe quanto vai com Stone. Não por escolha do cineasta mas pelo veto do ator à própria nudez frontal. Escolha que ela provavelmente não teve, né?
(aliás, ele também vetou a possibilidade do personagem ser bissexual, o que de alguma forma só reforça a sátira que o filme faz com a fragilidade masculina do detetive durão)
Instinto Selvagem é sim, então, misógino por participar de uma indústria misógina mas não por algum aspecto só dele, que de um ponto de vista estético inclusive faz chacota com signos másculos do subgênero. Isso num filme que marginalmente deixa fluir essa ridicularização do anti herói do noir enquanto se apoia mesmo com a estética ao redor da história. E sim: a obra também nunca decide de fato se devemos gostar ou não da psicopata no centro da trama. Mais preocupada em nos provocar do que com qualquer outra noção fundamental de narrativa.
São críticas cabíveis no fim das contas. Mas relativas a aspectos que fazem deste um dos grandes representantes do suspense erótico do fim do século.
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basic instinct, eua, 1992
direção: paul verhoeven
roteiro: joe eszterhas
fotografia: jan de bont
montagem: frank j urioste
elenco: michael douglas sharon stone george dzundza jeanne tripplehorn leilani sarelle denis arndt bruce a. young chelcie ross dorothy malone wayne knight daniel von bargen stephen tobolowsky benjamin mouton jack mcgee bill cable stephen rowe mitch pileggi mary pat gleason freda foh shen william duff-griffin james rebhorn david wells mary ann rodgers adilah barnes irene olga lópez juanita jennings craig c. lewis michael david lally peter appel michael halton keith mcdaniel eric poppick ron cacas kayla blake bradford english ashlyn gere jeanne basone doreen foo croft christa connor anne lockhart patricia anne isgate-hayward ken liebenson lindy rasmusson byron berline eddie dunbar tom mckibbin julia bond dave labrucherie pui fan lee andy rolfes bob sallese theodore carl soderberg damon stout chase watson