Conexão Paraná Bolívia: experimentalismo, morte, exagero, estilização plena e discurso vazio.

Sempre um show à parte, as sessões de curtas do Olhar de Cinema normalmente trazem uma forte conexão e evolução narrativa entre os filmes escolhidos para preencher os espaços. Neste ano, se não contarmos os dois médias brasileiros do primeiro dia (ambos com mais de meia hora de duração), assisti a nove curta-metragens numa tarde de segunda-feira.

Primeiro foi parte da mostra Foco, onde o festival escolhe um cineasta jovem com pouca ou nenhuma distribuição no Brasil como forma de inserir todos ou quase todos os seus filmes aqui. Este ano é o boliviano Kiro Russo, cuja obra, a julgar pelos curtas que foram a única coisa que vi, é muito reflexo daquele país em mutação depois da era Evo Morales, lidando com a causa indígena, a natureza, a mineração tudo sob uma verve de experimentalismo com a fotografia. Foram quatro filmes dele e um de um parceiro criativo.

Depois foi a já tradicional mirada paranaense, que mesmo sem uma conexão clara entre os filmes dessa fatia, representa a diversidade que o estado e cineastas do estado trazem. De boas reflexões documentais clássicas sobre vida e morte a monólogos que soam pretensiosos demais para seu próprio bem. Passando até por projetos frutos de financiamentos coletivos e muito ligados à produção e às discussões do online contemporâneo.

Juku, Kiro Russo, 2011

De alguma forma, consegue ser narrativamente excessivo mesmo com só 18 minutos. A visualidade do chiaroscuro, as texturas, os sons abafados, a lama, a umidade e tudo o que envolve o aspecto sensorial do curta são o que há de melhor e o que melhor materializa a vida de mineração, que é um tema tão relacionado à bolívia. Mas ainda existe uma intensão de trama, de relato, de narrativa, que fica no caminho disso. Julgando Russo pela carreira experimental e pesando a mão nas texturas e tons da imagem, Juku é um dos mais bonitos mas que dilui essa potência numa certa banalidade.

Enterprisse, Kiro Russo, 2010

Fui afetado de alguma forma por um vídeo de apresentação do diretor, que falava do poder de ter visto esse indígena assistindo às atrações de um parque de diversão na revolução que foi o primeiro mandato de Evo Morales para o povo boliviano. É uma imagem muito eloquente mesmo. E tem até sua metáfora explícita (primeir, em preto e branco, ele assiste, depois, em cores, ele faz parte entrando no brinquedo). Mas não por isso Enterprisse deixa de sofrer dos excessos que normalmente saem de um primeiro filme. O exagero do super 8 sujo, o registro de imagens que querem dizer alguma coisa todas juntas. Uma montagem que quer ecoar um construtivismo russo (como ele próprio define). Kiro não é nenhum Dziga Vertov. Mas Enterprisse até funciona como registro dos temas e subtextos daquele país naquela época.

La bestia, Kiro Russo, 2015

Deve ser o curta mais objetivamente belo. Mas também acaba sendo o mais banal. E o mais narrativo de alguma forma. Um nativo quéchua num mundo intocado pela violência da colonização que descobre uma criatura por ele nunca vista. Parece, entretanto, que enquanto o filme busca ambientar esse personagem nesse cenário, Kiro Russo se encanta demais com a beleza do retrato em preto e branco da natureza exuberante. É seu curta mais bonito mas de certa forma é também o mais feio por isso. Tudo soa muito frio, muito distante. A imagem carece do ruído. E a narrativa também. (mas esse não é o forte dele talvez)

Nova vida, Kiro Russo, 2015

É o grande curta de Kiro Russo. O que mais me deixou curioso pelos longas que não vi. Onde o fiapo de narrativa existe sob uma lente de voyeurismo e onde o apuro visual do 16mm a longa distância equilibra tudo. Existe algo no uso da cor vermelha também que parece que une aquela família à qual assistimos. Jovens perdidos que encontraram a si mesmos naquele labirinto de concreto onde eles vivem e sobrevivem. Nos momentos de comunhão e nos momentos solitários, onde acham que ninguém está olhando.

Despedida, Pablo Paniagua, 2015

É o patinho feio da seleção. O filme de Pablo cai no meio dos filmes de Kiro. Mas mesmo que não soubesse disso, é gritante a diferença de estética e proposta desse para os outros. Um retrato de um imigrante russo na Argentina que faz o que tem que fazer mas não muito mais. Acaba sendo meio banal, mesmo que o que estrague aqui talvez seja a comparação com os outros filmes de Kiro Russo exibidos juntos desse. Talvez valha uma revisita eventualmente.


O hábito de habitar, Nicolás Pérez

Esse tema de refúgio e imigração deve ser futuramente considerado um dos que mais marcou o cinema das segunta e terceira décadas do século XXI. De grandes produções europeias que vão parar no Oscar a um curta gravado no Paraná, perto da fronteira com o Paraguai. Sobre imigrandes bolivianos que tentam se equilibrar entre suas memórias e a construção de uma vida nova. O hábito de habitar lida com isso mas interessa mesmo porque opta pelo registro do que há de ritualístico nessa situação. As fotos na parede, o fogo, o registro de passagem de uma realidade à outra. Não é nada demais esteticamente, mas consegue ser esse registro quase singelo do casal.

Deus me livre, Carlos Henrique de Oliveira & Luis Ansorena Hervés, 2022

O mais interessante e melhor dessa sessão de curtas, Deus me livre pode ser até banal na forma de se organizar enquanto registro. Um vai e vem entre dias fora e dentro do trabalho de dois coveiros ao longo do ano da Covid. Com cadáveres se acumulando literalmente em seus trabalhos e a conversa sobre amenidades para lidar com esse aspecto horrível do trabalho. É o tema do que é discutido que se torna o mais impactante. Política, vida, morte, medo da infecção. Religião, principalmente. O que cada um acha que vem depois desse ritual do enterro. O que cada um pensa sobre lidar com a morte no dia a dia e com a tristeza e o luto como efeito colateral da rotina. A discussão sobre se deixar afetar ou não. Da ideia de que alguns filmes valem simplesmente pelo registro de um lugar e época, pode ser que aqui esteja o lado mais importante de Deus me livre. De alguém ter ido lá e nos feito pensar sobre como foi viver com essa tragédia de proporções imensas no maior cemitério do continente.

Último ensaio, Bruno Costa

Bruno Costa fez um barulho anos atrás com seu filme Mirador, que também passou nesse mesmo festival de Curitiba. Deve ser muito melhor que este curta que é o filme mais insuportável do Olhar de Cinema no ano, pra mim. Um monólogo feito de descrições, roteiros, pedaços de livros lido pela atriz Rosana Stavis que até faz o que pode com isso. Até porque é o texto que cria o constrangimento e a irritação. Meio filosofia sobre males do mundo, meio registro de isolamento com texto meia bomba, o filme tenta fazer colar uma poesia jovem e concreta que talvez só não seja a minha praia mesmo. Coisas tipo: “Narrativamente. Narrativa? Mente? Nossa mente..” ou algo assim. O pior é que quando um filme te pega desse jeito tudo acaba irritando. Aqui, além do texto, do PB e da fonte minúscula escrita em branco e pontuada em preto ou vice-versa tem literalização do que é dito (ela lê um roteiro que descreve algo e depois o filme mostra exatamente como descrito no roteiro). Por quê?Não quero ir atrás para descobrir.

Valentina versus, Anne Lise Ale, E. M. Z. Camargo

Seria o pior filme desse combo, caso Último Ensaio não fosse exibido junto. Bom, Valentina Versus não é, mas ao menos ele acaba sendo inofensivo? Fica muito claro no ar, a ideia de ser um projeto de financiamento coletivo. Desse “cinema” atravessado pela nerdice online e a reunião de pessoas que curtem as mesmas coisas. Uma mão pesada do estilo Scott Pilgrim sem a precisão de Wright que parece uma sucessão de piadas internas que nem todo o espectador está inteirado. Há quem diga que vale pela mensagem e, realmente nesse aspecto, que bom que a juventude do Paraná está produzindo sobre diversidade e quebra de padrões. Mas ao mesmo tempo tem tanta coisa melhor sobre a mesma coisa.

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